quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Domingo

Acordar num domingo de manhã sem pressa, dispersa.
Sendo desperta apenas pelo cheiro do café sendo passado e pelo som da sua música em criação.
O Som que sai do seu violão vem lá de fora
 E encontra pouso aqui dentro.
Enquanto a peça vai sendo criada, as notas me tiram pra dançar

Termino de acordar num banho.
Corpo limpo, cabelos molhados, alma lavada
Coloco os pães de queijo para assar.
A gente se senta juntos
Conversamos sobre o céu, a terra, a água e o ar e... as contas.
 Plim! O forno avisa que os pães estão ao ponto.

O café está à mesa.
Comemos e bebemos, ele diz que a gasolina aumentou e não se escutam as panelas. Eu sorrio.
Como um rio que flui para o mar
Fluímos naturalmente pro quarto, de bem com a vida, com as contas e a gasolina.
Respiramos o ar leve da nossa rotina, que com nossas mãos construímos brincando.
Tornando simples o que o curso natural da existência quer complicar.
Já não somos tão jovens, não temos tempo a perder .

Um programa qualquer da TV serve-nos de distração
Não demora muito, estamos tão próximos que é possível ouvir um a respiração do outro
Nossos corpos aquecidos pelos nossos beijos e abraços é a senha pra sem olhar, um de nós passar a mão no controle.
 TV calada, som ligado
Miles Davis e Coltrane, embalam nossa transa
Corpos suados, trêmulos de prazer
De repente, nossos olhos se encontram, sussurramos coisas deliciosamente sacanas em nossos ouvidos.

O nosso ritmo aumenta, o coração acelera, nossas pupilas se dilatam.
Suspiramos juntos.
Nos abraçamos.
Corpos imóveis, olhos fechados.

Ela ascende um baseado, e ele um cigarro.
Por alguns minutos eles são apenas deles.

Meio dia meia, o celular dela toca, são seus pais os convidando para almoçarem juntos.
No whatssapp dele o filho quer ir andar de skate no parque.

Tomamos um banho, nos aprontamos, pegamos o carro, a gasolina está na reserva.
Ela reclama do preço da gasolina e diz não ouvir o sons das panelas, nem ver o pato da fiesp.
Eles se olham, sorriem e vão embora pra mais um almoço de domingo em família.

Ela com seus pais.
Ele com seu filho.

Flor de Figo
Verão de 2018

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Outro tipo de mulher nua


Depois da invenção do photoshop, até a mais insignificante das criaturas vira uma deusa, basta uns retoquezinhos, aqui e ali. Nunca vi tanta mulher nua. Os sites da internet renovam semanalmente seu estoque de gatas vertiginosas.

O que não falta é candidata para tirar a roupa. Dá uma grana boa. E o namorado apóia, o pai fica orgulhoso, a mãe acha um acontecimento, as amigas invejam, então pudor pra quê? Não sei se os homens estão radiantes com esta multiplicação de peitos e bundas. Infelizes não devem estar, mas duvido que algo que se tornou tão banal ainda enfeitice os que têm mais de 14 anos. Talvez a verdadeira excitação esteja, hoje, em ver uma mulher se despir de verdade... Emocionalmente.

Nudez pode ter um significado diferente e muito mais intenso. É assistir a uma mulher desabotoar suas fantasias, suas dores, sua história. É erótico uma mulher que sorri, que chora, que vacila, que fica linda sendo sincera, que fica uma delícia sendo divertida, que deixa qualquer um maluco sendo inteligente. Uma mulher que diz o que pensa, o que sente e o que pretende, sem meias-verdades, sem esconder seus pequenos defeitos.

Aliás, deveríamos nos orgulhar de nossas falhas, é o que nos torna humanas, e não bonecas de porcelana. Arrebatador é assistir ao desnudamento de uma mulher em que sempre se poderá confiar, mesmo que vire ex, mesmo que saiba demais. Pouco tempo atrás, posar nua ainda era uma excentricidade das artistas, lembro que se esperava com ansiedade a revista que traria um ensaio de Dina Sfat, por exemplo. - pra citar uma mulher que sempre teve mais o que mostrar além do próprio corpo.

Mas agora não há mais charme nem suspense, estamos na era das mulheres coisificadas, que posam nuas porque consideram um degrau na carreira. Até é. Na maioria das vezes, rumo à decadência. Escadas servem para descer também.

Não é fácil tirar a roupa e ficar pendurada numa banca de jornal, mas, difícil por difícil, também é complicado abrir mão de pudores verbais, expor nossos segredos e insanidades, revelar nosso interior. Mas é o que devemos continuar fazendo. Despir nossa alma e mostrar pra valer quem somos, o que trazemos por dentro. Não conheço strip-tease mais sedutor.

© Martha Medeiros

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Arte de amar

Esquece...
Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

(Manuel Bandeira)

segunda-feira, 9 de março de 2009

A velha porca




Autor: Miho Washington(Flor de Figo) e Marcelo Batista



Ela era velha. E porca. A higiene definitivamente não era uma de suas maiores virtudes, se é que tinha alguma. Seu quarto era sua fortaleza e alter ego. Tão escuro quanto ela própria, mal projetado, ocupado por móveis de gosto no mínimo duvidoso. Ali a velha porca passava a maior parte de seu dia, de seus dias.
O intervalo entre arrumações era variável, mas nunca inferior a uma semana e nunca feita por ela própria. Não via necessidade. Afinal, pensava, no instante seguinte ao término de uma limpeza tudo já não estaria sendo desarrumado e sujo novamente? Então se for pra limpar que seja algo realmente contundente, digno de uma limpeza! Ainda que este pensamento tenha lá seu resquício de racionalidade não era condizente de maneira alguma com o que podemos entender como comportamento socialmente aceitável. Sim, pois ela era porca, sozinha, velha, mas tinha vida social. Resumia-se à visita semanal da sobrinha adotiva.

Miho se fazia presente para tentar lembrar à velha que ela ainda estava viva, com características e necessidades humanas. Bem, na verdade era mesmo basicamente pra dar uma bruta faxina, pois se isto não acontecesse a situação daquele apartamento facilmente poderia migrar de caótica para catastrófica.

As horas transitavam de um lado a outro diante de seus olhos cansados. Se indo ou vindo não faria para ela a menor diferença. Não se lembrava mais da própria idade, nem contava de forma alguma o tempo que lhe restava. Poucas coisas realmente lhe importavam: Os frascos de soníferos e antidepressivos, aquele aparelho estereofônico, o vinil que continha o dueto gravado ao vivo nos anos de chumbo por Cauby Peixoto e Ângela Maria. Aliás, se toda regra tem sua exceção entendo então porque a capa do bolachão é o único objeto pelo qual ela zelava. Tudo bem, Miho também já recolheu esta capa em locais inimagináveis, mas mesmo assim não se manteve legível e quadrada por mais de trinta anos? Então era objeto de zelo da velha, só podia ser.
Seus dias em pouco diferiam, mês após mês, ano após ano. Não havia calendário em lugar algum, relógio só o da torre, visível apenas pelo basculante do banheiro. A pontualidade de suas ações repetitivas era um espanto. Todos os dias ao cair da escuridão a velha, já com o único par de pantufas que possuía, hidrofóbico, preparava o café para se deitar. Será que ela não sabia que cafeína é prejudicial ao sono? Mas o que eram alguns miligramas de cafeína perto de uma dose eqüina de sonífero, que ela conseguia sem receita médica e sem dinheiro do sempre tão cuidadoso porteiro?

Na xícara de estimação repousava o resto do café extra-açucarado. No seu criado-mudo de madeira já não havia local onde a impressão digital da xícara já não tivesse sido carimbada, redonda, inclusive sobre algumas das muitas correspondências recebidas e não lidas. Sim, pois além de Miho e do porteiro, as operadoras de cartão de crédito e panfletos de marketing também nunca se esqueciam dela.

Religiosamente neste momento do dia tomava seus comprimidos, acendia seu cigarro, entreabria a janela, colocava seu bolachão para tocar e se deitava com a cabeça de lado sobre o travesseiro marcado pelas brasas de cigarros esquecidos. Os mesmos pensamentos lhe vinham sempre à mente, e ela sentia que, com o passar dos anos, o tempo entre a ingestão do medicamento e seu desmaio ia se dilatando. Padecia por horas até que a total confusão e perda de senso se transformassem em um estado de repouso que lembrava vagamente o sono. Entrecortado, mas ainda assim sono.

Nestas horas a velha porca achava que vivia. O ópio travestido de medicamento lhe trazia a falsa e extasiante sensação de ausência total de culpa. Via seus monstros todos atordoados, fragilizados. Em momentos assim ela não tinha parentes, passado, presente ou futuro, contas a pagar, portas a trancar, nada, nada. Olhava sempre em torno de seu próprio quarto, seu universo decadente e em expansão. Os vestidos de chita no guarda-roupa de pinho sem portas já não lhe contavam nenhuma novidade, mesmo sendo quase tão antigos quanto ela própria. Definitivamente, resmungava, já não eram os mesmos parceiros de conversa de tempos distantes.

O mesmo café da noite anterior que propositadamente sobrou na xícara costumava ser sua primeira ingestão do dia. Às vezes algum fragmento sólido lhe descia pela garganta. Não interessava o que fosse desde que não a surpreendesse guerreando contra suas amídalas ou fosse inerte ao seu suco gástrico. Nunca era.

Evitava olhar para o baú de couro de vaca no canto daquele cômodo, onde repousavam incólumes dezenas de livros, quase todos nunca lidos. Restos de um passado que nunca vivera realmente. Era como a lápide de uma jovem morta há anos, antes mesmo de ela própria nascer. Como seria esta jovem hoje? Aí está o pensamento mais proibido de todos. Ela sequer cogitava pensar em pensar em algo parecido. Por isto nunca mais se abaixara diante dos livros, nem mesmo para pegar a bituca de cigarro que no baú caíra certa vez afrontando a ditadura do branco-e-preto daquilo que um dia fora uma vaca malhada. Miho certamente se encarregaria. E se encarregou mesmo, até com certa satisfação, pois a vaca malhada agora é chique que nem ela: Tem tatuagem e é tricolor.

Miho sabia que a velha precisava ouvir sua voz, sentir seu abraço, ser admoestada, ser tratada como criança às vezes. Bem pode ser que estas ações a conservassem em formol, quase viva, ainda neste século. Caso contrário sabe-se lá o que poderia ser da vida (?) da velha.

Naquelas dantescas TPMs Miho jurava a si mesma que daria um sumiço na megera. Sua consciência, ao percebê-la sutilmente maquinando contra o ente, lhe apunhalava a têmpora. De leve, mas a espetava. Certamente pessoa tão pacífica jamais atentaria contra a tia. Suas ações de madre Tereza eram seu álibi preventivo e testemunha. Mas ficar horas num local que mais lembrava a trincheira vietcongue em filme parcial de guerra era o suficiente para que ela se permitisse viagens aos porões da mente, em instintos neadertais. Haja sentimento pacifista! Mas até que Miho se divertia com esses delírios controlados e já ensaiava colocá-los num papel pra ver como fica. Com ou sem seus devaneios o final da tarde lhe enchia o coração quando retornava ao seu próprio lar deixando para trás uma sobrevida e uma esperança de que alguém do outro lado da avenida lhe quer muito bem e que se lembra dela, maldita velha porca. Fora o benefício secundário de, se faltar papo com as amigas na night, Miho poderia desfilar suas lamentações e intenções desumanas. Sempre dava “ibope”. Ainda mais se o álcool já estiver com uma das mãos nas rédeas do comportamento e senso do ridículo. Daí ela tergiversaria filosoficamente acerca da velhice, da solidão, da transição, da solidariedade, da esperança. Nada que uma boa, fútil e improdutiva fofoca de banheiro não dissipasse instantaneamente, para alívio imediato da nação de amigas.

Ah, meio dia. Horário maldito para a velha. De novo esse assobio que acha que escuta! Sabe que não há mais ninguém em casa além dela e sabe que essa música que acha que ouve é assobiada apenas pela sua mente doentia e cansada. Quem, além dela conhecia a música que lhe marcou tão amargamente a vida? Desde 1964 ela ouve assim a mesma música que assassinou a jovem que hoje é o zumbi no baú dos livros. Maldito o dia em que se apaixonara!

O presidente Jango rumava para o Uruguai sem passagem de volta no dia em que ela passava com o pesado ferro a brasa o vestido amarelo que usaria logo mais na festa de quinze anos de uma conhecida, alheia ao mundo, pensando unicamente em encontrar-se com um alguém em especial.

No casarão da grande festa a taça de itu contendo o ponche com cubinhos de maçã era o carro alegórico de maior destaque naquela avenida cheia de figurantes. Foi dali detrás, entre o ponche e a bandeja de capetinhas que ela enfim localizara Vanderval com o olhar, pra ela sempre Vandinho. Sim, ela seria de Vandinho e nada a impediria. Num tempo em que o amor livre era celebrado e “livre” era só mais uma palavra sem sentido, ela se guardava para uma minuciosamente planejada loucura de amor e sexo com ele. E seria hoje no jardim, que é pra impressionar as amigas e de quebra alimentar a tara. E depois se casariam. Faltava passar a Vanderval a sua parte do script.

Eles se namoricavam, é verdade, mas uma relação definitiva era algo que Vanderval jamais especulou para si. Claro que gostava dela! À sua maneira. Adorava seus seios, suas coxas, sua cintura deformada pela cinta modeladora, sua boca deliciosa, seus longos cabelos e suas unhas vermelhas que pareciam ávidas por carne fresca. Se cheirasse melhor poderia até ser a mulher de sua vida, mas ninguém é perfeito. Ele pensava com taquicardia nas anáguas sobrepostas que estaria manuseando naquela mesma noite. Já ela se sentia a mais preparada e amada das moças, uma vez que lera todos os romances de sabonete e, portanto, possuía vasta experiência em relacionamentos afetivos, adorando atender esporadicamente como consultora sentimental das amigas. Tão experiente que não se esquecera do laxante no dia anterior “que é para murchar a barriga”.

“Hoje serei dele, hoje serei dele”, jurava repetidamente a si mesma em silêncio. Em ação no local e momento combinados, Vandinho segurava-lhe as anáguas num canto do jardim, jurando serem três. Hoje vai! Hoje vai!

Não foi.

Vanderval num inesperado grito de “me espera” a deixou entranha e subitamente ali, sozinha, semi-nua. Decerto fora certificar-se de que ninguém os espionava, cria ela. Como um fogo de tora grande, ela custara a acender, mas custara também a esfriar-se. Vários minutos se passaram até que sua respiração voltasse ao normal e suas pernas estivessem como seu pai mais gostava. Juntas. Muitos minutos mais foram necessários até que ela cresse que fora abandonada, descartada. Sumiu o desgraçado do Vandinho. Como rejeitar minha entrega? Por acaso ele não teria visto a calçola nova que comprei exclusivamente pro grande dia? Não fui boa e quente o suficiente para ele?

A mente mergulha num poço de piche como pedra de pontas, sem a menor pretensão de retornar à superfície.

Pronto! Estava dado o tiro de partida de uma corrida que jamais teria fim. Justo ela que nunca foi uma pessoa que podia ser rotulada de mentalmente sadia, agora com o grande trauma da rejeição para administrar. A idade não favorece. Contar com o apoio dos pais nem pensar. Amigas? Que amigas? Essas só servem para os momentos alegres de deboche de outrem. Para as frustrações nunca serviam.

O despreparo não podia ser maior. Nem o impacto. Uma tsunami de emoções destrutivas abalara suas convicções, seu orgulho, vaidade, confiança, amor próprio, esperança, feminilidade, temperança, lógica e razão. Definitivamente não estava preparada para enfrentar qualquer conflito de qualquer natureza, quanto mais um desta magnitude.

A jovem sensual de odor estranho se transformara então na velha porca. Mas não tão subitamente. Um intrincado processo fora desencadeado a partir dali.

Agora, após tantos anos, a sexagenária rumina o passado e regurgita no presente. Fita o olhar nos cantos de sua morada, como quem procura algo que lhe chamasse a atenção e que a tirasse de dentro de si mesma. Não pode se dar aos tranqüilizantes e soníferos agora, a esta hora do dia. Tem que preservá-los para a nobre função da noite. Então deve sobreviver apenas com o auxílio luxuoso de seus parceiros um tanto quanto démodés: as revistas de sacanagem barata, um livrinho kama-sutra ilustrado à mão adquirido por oito e noventa na banca da esquina, suas lingeries da revista Hermes, seus vidros de alfazema vazios, alguns vinis de Wando, Benito di Paula e sui generis, um livreto de simpatias que nunca deram certo e as rasuradas palavras cruzadas. Nas paredes podem ser ainda encontrados pôsteres de Orlando Silva, Nélson Gonçalves e uma santa ceia desbotada e com moldura suspeita. No corredor, a caminho do banheiro, na parede esquerda um dia reinara vossa majestade Roberto Carlos e seu inconfundível medalhão. Hoje, no alto relevo da cola real estão anotados em tinta de esferográfica azul restos de uma antiga lista de compras. Cortinas baratas de estampa floral são responsáveis por todas as cores vivas do ambiente juntamente com as flores de plástico na garrafa pet. “É de ‘práchico’ mas é minha”, exclamava a velha diante das ameaças de Miho de desaparecer com essa “aberração da decoração de interiores”. Acredita em tudo o que ouve sobre política nos jornais globais e desacredita na sobrinha que jura um dia mandar aparar o mato que domina a jardineira da janela e enviar para o Ibama o bicho esquisito que vive lá.

O pote de rapé pela metade é inútil para fazer dar sinal de vida seu vizinho santo Antônio, tão empoeirado quanto detonado por marcas de objetos pontiagudos, ambos esquecidos em cima do guarda roupa. O boneco tinha mais cicatrizes que Silvester Stalone em seus rambos e rockys e estava mais pra voodoo que pra santo.

Recentemente passou a usar pomada Minâncora após os muito raros banhos, mas algo a dizia que deveria depilar as axilas ou mudar de produto, não estava sendo uma combinação perfeita, convenhamos. Optou pelo óbvio: Abandonar a idéia de desodorizar e deixar que a natureza siga seu rumo.

Miho lhe aplicava creme enxaguante nos cabelos e deixava a recomendação de um bom banho para um bom enxágüe. Boa estratégia, mas de pouca valia. Nunca deu certo. A velha, sem banho, esquecia o creme nos cabelos, o que lhes conferia excelentes propriedades de atração e retenção de partículas dos reinos mineral e animal, além de seborréia.

Além dela própria, apenas as pantufas conheciam suas feridas no calcanhar, tão bem escondidas da sobrinha. Sabe-se lá o que Miho faria se soubesse? Era capaz de até tentar uma esfoliação, ou cremes, sei lá. Melhor deixar como está.

Há alguns anos a tia era comumente vista usando uma trança embutida que, com relativo sucesso, domava fios rebeldes. Mas como tudo evolui, ela descobriu que um simples lenço resolve o problema. Até o pano de cozinha já demonstrara desta forma mais uma das mil e uma utilidades que o sábio oráculo chamado TV já dizia. Para ela, o fácil é o certo.

Vanderval é um mito, uma lenda, um delírio. A velha às vezes se esforçava para crer nisto, mas a fotografia debaixo do colchão, ao lado de uma edição setentista do Pasquim que alguém esquecera, era a evidência objetiva que não. Não era mito. O maldito habitava mesmo nas suas memórias dilacerantes, vivo como árvores milenares que só crescem e nunca morrem. Tudo são obstáculos que parecem existir com a única finalidade de deixar mais distante o momento do Valium manipulado e do pseudo sono. Mas ela esperava, não com paciência, mas com o sentimento de derrota por saber que nada faz rodarem mais rápido os ponteiros do relógio da torre.

A caixa de antidepressivos estava com suas últimas unidades. Onde mesmo enfiara aquela caixa nova? Existe uma caixa nova? Hoje tem Domingo Legal?

Que aceitar o destino que nada! Queria mesmo é que o Vanderval aparecesse um dia. Pelo menos para dizer que havia sido seqüestrado, ou preso, quem dera morto. Se ele pelo menos tivesse por ela um décimo do cuidado que lhe reservara o tão sempre amável porteiro, “seu” Almeida...

* * *

Naquela noite longínqua de 1964 Vanderval a si mesmo impunha que faria amor. E que seria a primeira de uma série interminável de vezes. Era jovem, viril, saudável, o que poderia dar errado? Sua pequena o amava e estava ali, no canto do jardim da casa, deitada com as belas anáguas agora não mais cobertas, mas cobrindo o lindo vestido amarelo. A delicada e nova calçola à mostra, as eróticas unhas vermelhas se firmando em suas costas. Era tudo perfeito. Ou quase tudo.

Vanderval não funcionou.

Ao debruçar-se sobre ela e sentir seu odor que não era de todo terrível, mas certamente contrastava com o que seus outros sentidos captavam, ele titubeou. Não entendia porque simplesmente não conseguia a ereção, mas via sua tão aguardada chance escoar pelos seus braços. Ele próprio na “hora dos parabéns”, quando todos estavam com a atenção sendo direcionada a um único tema, sorrateiramente batizara o ponche com vodka para deixar sua companheira mais receptiva. Todos os demais efeitos desta travessura seriam colaterais e, portanto, desprezíveis. Tinha até uma prévia do relato que faria no outro dia aos seus amigos, claro, com os devidos acréscimos que é para manter a fama. Mas seu corpo resolvera dissociar-se de sua mente desejosa e deixá-lo na mão. Ou pior: resolvera dar ouvidos à sua insegurança e falta de confiança.

Não. Isso pode acontecer com qualquer um, menos com Vanderval, ainda mais na sua primeira vez. Ele já espalhara por todo o bairro que era homem sexualmente ativo e de larga experiência, mas o fato era de que não conseguia dar vida ao personagem que tanto alimentara nos sonhos e devaneios. Vanderval era macho, muito macho, batia nos irmãos menores e pichava as viaturas da polícia. Espiava donzelas nuas por todas as frestas quanto possíveis e carregava objetos tão pesados que lembravam as proezas hercúleas. Pelo menos na sua própria imaginação. Como um varão desses poderia sucumbir diante de uma tão frágil criatura? Ainda mais adornada por frufrus amarelos e rendinhas?

Saindo dali, seu subconsciente, antevendo a crise de sua prima consciência, tratou logo de arranjar uma rota de fuga - o cheiro. Era isso! O cheiro dela era tão terrível que desestimulou seu lado animal. Claro, a culpa é dela e muito dela. Maldita vaca, imunda. Aliás, maldita porca. Isso! Porca! Porca, porca, porca! Gritava dentro de sua cabeça uma voz cheia de razão, autoritária, um legítimo advogado de acusação.

Na manhã seguinte as portas negras das enormes viaturas da polícia cederam lugar e vez ao muro claro e bem acabado da residência de seu novo desafeto: “SUA PORCA IMUNDA” eram os dizeres, pichados em letras gigantes, que estupraram e esfolaram a alma daquela que um dia seria a velha mais louca e porca que se teve notícia.

Ela leu. Chorou. Surtou. Enfim, cedeu às acusações de Vandinho e, no tribunal de sua psique, admitiu-se culpada diante de seus atrozes acusadores imaginários. Não servia mesmo para ser mulher de ninguém. Com tanta garota bonita e limpa, porque um homem em sua sã consciência se entregaria às paixões e amores de uma porca imunda cheirando a chorume?

Enquanto Vanderval tentava viver uma vida quase comum, exceto pela ausência de mulheres, amores e paixões, a velha porca por sua vez nunca teve juventude nem uma fase adulta normal – pulara de seus dezesseis anos para os atuais sessenta e um. Assim mesmo, abruptamente, com ou sem processo de muda. No meio do caminho Cauby e Ângela foram suas únicas companhias na cama e testemunhas das manias que iam surgindo e se somando, cumulativas.

O outrora belo jovem que um dia teve seu nome sussurrado ao ouvido agora era mais conhecido na cidade como “seu” Almeida, o porteiro bonachão, gente boa, solícito a ajudar a todos, em especial à senhora do 202. Um denso, largo e escuro bloqueio psicológico de sua ex a impedira de ver naquele senhor inofensivo o mesmo jovem que amara décadas atrás e que lhe dilacerara a vil existência. Melhor assim, para ambos. Para ela, contribuía para a preservação daquilo que ainda a identificaria como ser humano. E para ele, pois poderia planejar e levar a cabo suas sádicas lucubrações de vingança e transferência de culpa, incólume, bem ao lado de sua vítima.

Quando viu que não foi e nem seria reconhecido pela “vaca maldita” esteve muito próximo de seu primeiro orgasmo real.

Hoje levemente obeso, com um sotaque baiano inventado nada convincente e uma calvície que era limítrofe ao boné de propaganda política que sempre ostentava, Vanderval Lopes de Almeida Neto era o mantenedor da velha porca. Como a bruxa da história infantil que alimenta as crianças a fim de comê-las vivas, Vanderval era seu grande mantenedor. Era ele quem levava as compras escada acima, fazia o serviço de banco, executava pequenos reparos e servia de verdadeiro faz-tudo. Tudo para ser visto como homem de confiança, acima de qualquer suspeita. Minava da senhora qualquer chance de reação, quando, no momento em que a via mais lúcida passava de largo assobiando a mesma música que embalou o sonho a dois que nutriam quando jovens e que a bandinha tocava naquele fatídico momento no jardim. Quase todos os dias o fazia. Sabia onde podia se posicionar para não ser visto, mas muito bem ouvido.

Ah! Como era boa a sensação de ver aquela mulher que lhe roubara a virilidade irrompendo um cômodo após outro, julgando ser mentira o assobio que verdadeiramente ouvia! Valia todo o sacrifício.

Dentre suas muitas benfeitorias à velha estava a principal: Fornecer os antidepressivos e soníferos. A ela pouco importava de onde ele tirava as drogas, desde que não lhe faltasse. Era tudo o que ele queria para ir minando aos poucos a já débil saúde física e mental de sua presa.

No começo eram medicamentos reais, manipulados para outros pacientes, devidamente roubados de uma farmácia onde fora vigia por alguns anos e que mantinha cópia de todas as chaves. Mas com o tempo Vanderval colocava, na cozinha de seu barraco, com toda a paciência, todo tipo de aberração nas cartelas e potes. Doses infinitesimais de estricnina, chumbinho, soda cáustica, e toda forma de deturpação já foram experimentadas. Mas o gran finale ainda estaria por vir.

A velha já procurava a caixa de remédios que sabia estar no fim, quando deparou-se com “seu” Almeida à porta, como sempre fazia, portando um frasco de sonífero novinho em folha, daqueles bem grandes, sei lá, duzentas, trezentas drágeas. É um anjo esse homem, cria a carcaça debilitada que se arrastava com a dificuldade imposta pela hérnia de disco. Com a informação de que se tratava de um medicamento muito mais fraco que o convencional, Vanderval sugeriu que ela fizesse o uso de várias unidades para que obtivesse o mesmo efeito. Assim ela fez e realmente o medicamento não era aquele convencional. Era a versão mais poderosa já produzida, indicada apenas aos pacientes de quadro sintomático mais agudo, exatamente como descrito no rótulo. O corpo frágil da velha não resistiu, como era de se esperar. E esperar é exatamente o que fez “seu” Almeida. Esperou pacientemente até que a mulher se deitasse na cama e parasse de respirar.

O mesmo excitante calafrio lhe percorrera a espinha, exatamente como no dia em que teve a certeza de não ser reconhecido.

Os dias se passaram e “seu” Almeida recebera até abraços de consolo pela perda daquela que seria sua única amiga, mais que os reservados à própria sobrinha da falecida.

Trabalho bem feito, acima de qualquer suspeita, Vanderval pede conta quatro meses após o ocorrido. Já não tinha mais nada a fazer ali naquele prédio velho e mal cheiroso. Continuaria velho, é verdade, “mas bem menos mal cheiroso com certeza”, ria-se sozinho de sua negra tirada de humor.

Pela Rua dos Andradas subia agora um senhor calvo, de boné e calça de tergal, com os olhos opacificados pelo tempo, mas ainda cheios de sagacidade. Levava consigo seu acerto trabalhista em um envelope pardo A4. Subira por ali inúmeras vezes. Neste percurso já sentira frio, calor, dor, desesperança, fome, ódio, rancor e o peso de uma existência vazia. Mas desta vez o sol lhe brilhava no rosto de uma maneira diferente, bem diferente.

Ao assobiar a mesma música rua acima, agora o astro rei lhe parecia muito mais resplandecente, mais claro, mais vivo, mais leve. Sentia-se jovem de novo.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Por que?


Partindo da premissa de que o objetivo maior do homem é ser feliz, por que a gente nem sempre busca o que realmente vai nos fazer feliz?
Aliás, será que ser feliz é algo que está dentro de uma relação de causa e consequência? Do tipo, faça isso ou aquilo, e seja feliz? Talvez seria mais interessante primeiro ser feliz, depois fazer isso ou aquilo.
Fato é que hoje acordei um tanto racional, equacionando tanto a vida, e graças a uma amiga voltei ao meu centro.
Santa amiga, Batman!!!! Por muito pouco eu não saí por aí dando tiro em quem não merece.
Ando cansada de análises cretinas, do tipo, "copo meio cheio" ou "copo meio vazio", CELEBREMOS O COPO!!!!
Por que algo tem que ter acontecido para dar explicação do vir a ser???
Por que temos a obrigação de explicar tudo?
A EXISTÊNCIA NÃO É PARA SER EQUACIONADA.
Não caiamos no niilismo, se for pra pensar como Schopenhauer, melhor o suicídio. Vivemos sempre no eterno devir, logo, não vejo muito sentido em valorar se vale a pena viver, pois a cada dia se vive novos fenômenos, agradáveis ou não. Afirmemos a vida em toda as suas manifestações... felizes ou não ;-)

quinta-feira, 5 de março de 2009

Frio


O que me faz sentir tanto frio?
É incrível sentir frio dentro do corpo.
Não o frio que um copo de água gelada, pode proporcionar num dia quente; não.
Frio dentro do peito
Frio que estremece meus orgaos mais vitais, minhas entranhas viscerais
Frio que muda minha expressão facial
Frio que agrava o tom da minha voz
Frio que faz doer a minha alma
Frio que só vai embora com o seu abraço
É incrível sentir o abraço dentro do corpo
Abraço que envolve mais que o corpo
Abraço que esquenta mais que a dose exagerada de conhaque em uma noite gelada
Abraço que estremece os mesmos orgaos vitais
Abraço que adoça a voz
Abraço que afaga a alma
Abraço que só vai embora com o frio da realidade que insiste em racionalizar meus sentimentos
A parte disso, o Medo.
Medo de viver o resto da vida sentindo frio em outro abraço.
14/08/2001

Rota da Sede


A estranha atração pelo profano
Marca as horas do último email lido
Libido

Mares nunca dantes navegados
São a rota dos nossos encontros e desencontros
Navegar é impreciso, viver é preciso

Onde você encontra a liberdade vendida
Desencontro terra à vista
O sorriso esconde o porto seguro
De quem bebe me fazendo sentir sede

Oníricas são as horas
Em que sua cartografia se encontra em minhas mãos
Desperto
e minha bússola já não aponta mais para o norte.

Miho Washington
11/02/09